Os dois meses de silêncio da África do Sul após Bolsonaro indicar Marcelo Crivella para embaixador
]
Bolsonaro na inauguração da Escola Cívico Militar ao lado do ex-prefeito do Rio Marcelo Crivella | Marcos Correa
Jair Bolsonaro bem que quer ajudar a Igreja Universal de Edir Macedo, mas tem países e autoridades que não colaboram nem um pouco.
LEIA MAIS: Bolsonaro quer Crivella como embaixador, mas ele não pode sair do país e está com passaporte apreendido
Já se passaram quase dois meses desde que o Itamaraty pediu o agrément à África do Sul para que o bispo Marcelo Crivella seja o embaixador em Pretória. Até agora, nenhum retorno foi dado.
Aliás, a demora na resposta quase sempre significa “não”. Jamais um país nega oficialmente, exceto se quiser abrir uma crise.
LEIA TAMBÉM: Embaixador na África do Sul? Crivella associou religiões africanas com sacrifícios de criança e ‘comportamento imoral’
No Brasil, as coisas não estão melhores para Crivella. Desde 20 de maio seus advogados pediram a Gilmar Mendes que o passaporte do ex-prefeito seja devolvido — e nada de Gilmar decidir.
VEJA AINDA: O constrangimento da indicação de Crivella para embaixada ainda sem data para acabar
O que o Republicanos planeja para Crivella
África do Sul mantém silêncio sobre indicação de Crivella como embaixador
]
Jamil Chade é correspondente na Europa há duas décadas e tem seu escritório na sede da ONU em Genebra. Com passagens por mais de 70 países, o jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparência Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Vivendo na Suíça desde o ano 2000, Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti. Entre os prêmios recebidos, o jornalista foi eleito duas vezes como o melhor correspondente brasileiro no exterior pela entidade Comunique-se.
Em um constrangimento cada vez maior para o governo de Jair Bolsonaro, as autoridades da África do Sul mantém silêncio diante do pedido do Palácio do Planalto para que chancelem o bispo e ex-prefeito Marcelo Crivella como novo embaixador do Brasil no país africano.
No início de junho, o Brasil submeteu aos sul-africanos o nome do novo embaixador, uma praxe diplomática. Crivella ainda precisa passar por uma sabatina no Senado e sua nomeação forçaria a remoção da capital da África do Sul de um dos embaixadores mais respeitados no Itamaraty, Sérgio Danese.
Mas, antes, sem um sinal verde por parte dos sul-africanos - um agreement, no jargão diplomático - não haveria sentido em manter o projeto da indicação de Crivella.
Mais de um mês depois do pedido, diplomatas no Itamaraty confirmam à coluna do UOL que nenhuma resposta foi dada por parte de Pretória.
Um dos cenários temidos por parte do governo é de que os sul-africanos passem meses sem dar uma resposta, uma forma diplomática também de indicar que não estão satisfeitos com o nome proposto.
O veto explícito a um embaixador estrangeiro causaria um abalo nas relações bilaterais. Portanto, o caminho de menor atrito seria o de “não decidir” ou adiar de forma indefinida uma resposta.
Na capital sul-africana, não há nenhuma explicação para a demora. Experientes negociadores brasileiros apontam que, quando se trata de um país aliado, é tradição dar o aval ao nome sugerido em poucos dias. Seria, na linguagem diplomática, um gesto de confiança.
Na condição de anonimato, embaixadores ainda revelaram que, em certos casos, países que queriam demonstrar uma afinidade com o governo brasileiro deram a chancela ao nome proposto em apenas 24 horas.
Outros diplomatas preferem, pelo menos por enquanto, não tirar conclusões precipitadas sobre a demora, indicando que o prazo ainda está dentro do “compreensível” diante da complexidade do caso.
Fontes do governo sul-africano admitem que um “não” ao Brasil potencialmente causaria um abalo na relação bilateral e poderia desgastar uma aliança considerada como estratégica.
Evangélicos e passaporte retido
A nomeação de um bispo ocorre num momento especialmente delicado para o governo Bolsonaro, criticado pelo movimento evangélico por não agir de forma mais contundente diante da crise aberta com a expulsão de representantes da Igreja Universal do Reino de Deus de Angola.
Com olhos na eleição em 2022, Bolsonaro não pode se dar ao luxo de abrir uma tensão com os bispos. Não por acaso, também designou o vice-presidente Hamilton Mourão para tratar da situação em uma recente visita ao presidente de Angola.
Os sul-africanos, portanto, vivem uma encruzilhada entre agradar ao Brasil e não comprar uma briga com seus vizinhos no continente.
Mas a crise ainda é ampliada pela situação judicial de Crivella. O ex-prefeito até agora não tem acesso a seu passaporte, retido pela Justiça.
Angola teme que Crivella transforme embaixada na África do Sul em posto avançado da Universal
]
Brasília
A indicação de Marcelo Crivella (Republicanos) para ser embaixador do Brasil na África do Sul gerou queixas de autoridades do governo de Angola, que temem que o ex-prefeito do Rio transforme a missão diplomática num posto avançado da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) no continente africano.
A Universal atravessa uma crise em Angola, com a rebelião de religiosos locais e o envolvimento de lideranças brasileiras da instituição em acusações de crimes financeiros. Assim, o racha da IURD converteu-se num ponto de tensão entre os governos de Brasil e Angola. Um dos capítulos mais tensos dessa crise ocorreu em meados de maio, quando 34 brasileiros ligados ao trabalho missionário receberam a notificação de autoridades em Luanda de que seriam deportados.
O hoje ex-prefeito do Rio Marcelo Crivella após ser detido pela polícia - Pilar Olivares - 22.dez.20/Reuters
A igreja comandada pelo bispo Edir Macedo passou a cobrar de Jair Bolsonaro um maior envolvimento do Itamaraty na defesa dos interesses da instituição no país africano. Num aceno à bancada evangélica, o presidente então decidiu nomear Crivella —bispo licenciado na IURD— como embaixador em Pretória.
O Ministério das Relações Exteriores já enviou a consulta oficial sobre a designação, chamada agrément, um procedimento anterior ao encaminhamento do indicado para análise do Senado Federal.
Lá Fora Receba toda quinta um resumo das principais notícias internacionais no seu email Assine a newsletter aqui
O agrément é uma comunicação sigilosa em que um país solicita a anuência do outro para o envio de um novo embaixador. A praxe é que a consulta só seja devolvida caso a resposta seja positiva. Se o país a receber o nome selecionado tiver alguma objeção, o pedido é ignorado, em sinal de recusa.
As críticas sobre a indicação de Crivella foram apresentadas, em conversas reservadas, por membros do governo de Angola a interlocutores no Itamaraty e a autoridades sul-africanas. Procurados, tanto o ministério brasileiro quanto a embaixada de Angola em Brasília não responderam.
O incômodo também foi manifestado por representantes do governo de Moçambique, de acordo com relatos feitos à Folha, já que a IURD também está presente em território moçambicano.
O medo desses países é que Crivella use a estrutura da missão brasileira para defender os interesses da Universal em toda a região. Além da oposição dos dois países, a escolha causou constrangimento no Itamaraty e criou uma saia justa para o governo sul-africano liderado por Cyril Ramaphosa.
Por um lado, a África do Sul não quer criar rusgas com duas nações africanas com as quais mantêm fortes laços econômicos e políticos. Mas tampouco gostaria de se indispor com o governo Bolsonaro, um dos parceiros no Brics, bloco também formado por Rússia, Índia e China.
Uma pessoa que acompanha o tema disse, em condição de anonimato, que a África do Sul tende a tolerar Crivella para evitar um choque direto com o presidente brasileiro, uma vez que, na praxe diplomática, a rejeição a um indicado a embaixador é considerada um sinal de forte descontentamento.
Na África do Sul, a Universal também atravessa uma crise, com situações semelhantes às registradas em Angola. Mas o cisma sul-africano tem proporções menores, disse à Folha um interlocutor. No Itamaraty, a designação de Crivella causa desconforto em razão do atual chefe da missão brasileira em Pretória, o embaixador Sérgio Danese. Diplomata de carreira, ele está há menos de um ano no posto.
Danese é um dos diplomatas da ativa mais graduados no Itamaraty. Na década de 1990, ocupou cargos de destaque nos ministérios da Fazenda e do Meio Ambiente e foi chefe das embaixadas do Brasil em Argel e em Buenos Aires. Entre 2015 e 2016, Danese também foi secretário-geral do Itamaraty, o segundo cargo mais importante na hierarquia do Ministério de Relações Exteriores.
Mesmo que o governo da África do Sul dê luz verde para Crivella, a ida do político para o posto ainda depende do ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Gilmar Mendes. Em fevereiro, o magistrado revogou a prisão que havia sido decretada ao ex-prefeito do Rio, mas estabeleceu medidas cautelares, como a proibição de sair do país e o recolhimento de passaporte.
Em maio, a defesa do político pediu ao ministro a reconsideração da decisão e a liberação para sair do Brasil. Gilmar pode analisar a solicitação sozinho ou remeter o tema à Segunda Turma da corte.
Crivella foi preso em dezembro por ordem da desembargadora Rosa Macedo Guita, do Tribunal de Justiça do Rio. Ele foi detido em operação da Polícia Civil e do Ministério Público que denunciou o político e outras 25 pessoas por organização criminosa, lavagem de dinheiro e corrupção passiva e ativa.